Por: Melquisedec Chaves do Nascimento
Na semana em que o STF julga a constitucionalidade das cotas raciais, cabem algumas considerações sobre um tema que ainda causa muita polêmica. Antes de discorrer sobre o assunto, vamos fazer uma distinção entre dois termos similares. As cotas raciais estão estritamente ligadas à promoção de ações afirmativas com o objetivo de diminuir as desigualdades sociais entre diferentes grupos étnicos. As cotas sociais, termo similar e mais abrangente, prevêem pontuações em concursos, vagas na universidade, etc. voltadas para alunos egressos da escola pública, brancos, índios, negros, cadeirantes, etc. Ou seja, enquanto uma atende a um grupo mais específico, a segunda busca atender diferentes públicos, independentemente da cor/origem.
Quando se parte para um debate sobre a
pertinência destas políticas de ação positiva, vemos posicionamentos na defesa
de que, primeiramente, deveríamos ter uma escola de qualidade para todos, o que
extinguiria a necessidade das cotas. No entanto, basta olharmos para a escola pública
e perceber que estamos muito longe de ver uma educação em que a qualidade do
ensino possibilite o ingresso da maioria dos alunos na universidade pública.
Por outro lado, há os que defendem as cotas igualitariamente para todos os
brasileiros pobres, independentemente da cor, isto é, que as cotas devem ser
direito de todos, sem a delimitação de etnia ou grupo social a que pertence o
interessado.
No entanto, é muito fácil notar que, do ponto
de vista da inclusão social, há uma disparidade enorme entre as condições da comunidade
afrodescendente e a realidade da população branca. Sabemos que tanto o branco
como o negro sofre discriminação. Não se pode negar a existência de atitudes
discriminatórias contra o branco pobre, mas há também a discriminação
relacionada ao pertencimento étnico. Logo, se o cidadão é negro, e pobre, ele
vai ser duas vezes discriminado, uma pela sua cor, e outra pela sua condição socioeconômica.
Diante deste fenômeno, podemos problematizar o
foi colocado até aqui, fazendo uma reflexão a partir de algumas indagações: com
quantos médicos negros você já foi consultado? Quantos alunos afrodescendentes estão
frequentando os colégios tradicionais de São Paulo, como o Rio Branco, Pueri
Domus, etc? Quantos negros estão atuando nas telenovelas que não fazem um papel
em que desempenham uma função subalterna? Até que ponto o programa Esquenta, da
Regina Casé, realmente promove a autoestima da população negra? Ou ainda vende
uma imagem da democracia racial no Brasil? Quais os motivos que levam o nosso
país a ter um contingente da população negra tão grande no sistema
penitenciário? Quantos alunos negros se veem representados positivamente nos livros
didáticos? Por quais motivos a taxa de mortalidade infantil da população negra
é maior que a branca?
Se considerarmos que vivemos no país com
maior população negra, depois da Nigéria e que, segundo dados do IBGE, mais de
50 % da população se declaram preta ou parda, as questões acima podem evidenciar
que algo está errado e nos permitem fazer alguns contrapontos com outro país
que adotou as cotas raciais.
Os EUA, palco de inúmeras contestações contra
o sistema segregacionista e que tiveram como destaques ativistas em favor dos
direitos civis da população afro-americana, como Martin Luther King, Malcon X e
os membros do Partido Panteras Negras, em 1860, já adotavam o sistema de cotas
em algumas universidades e, curiosamente, em 1885, já possuíam uma universidade para atender a população negra, a Atlanta University.
Na década de 60 as pautas
reivindicatórias contra o Apartheid, previam
uma atuação mais contundente do negro contra o racismo praticado naquele país,
que defendia, inclusive uma população afro-americana armada, não para sair
atirando a esmo, mas para se defender do poder de fogo das organizações como a
Ku Klux Klan, dos policiais racistas e de outros grupos separatistas.
No Brasil, embora não tivéssemos uma atuação
do movimento negro de modo radical como nos EUA, foram as reivindicações feitas
pelos movimentos sociais que resultaram em alguns indícios de melhora na política
assistencial da população negra, sobretudo com a atuação do finado professor,
poeta, ensaísta, deputado, e senador, Abdias do Nascimento, na militância do
movimento negro.
Como fruto dessas mobilizações, podemos
mencionar alguns avanços como objeto de políticas públicas relacionadas as
temáticas étnico-raciais nos últimos anos. Por exemplo, a criação da lei 10.639/03,
que altera a Lei de Diretrizes e Bases e versa sobre a obrigatoriedade do
ensino de história da África e dos africanos e da luta dos negros no Brasil, em
todo o currículo escolar. Também em 2003, a criação da SEPPIR, Secretaria de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que tem como objetivo a articulação
de políticas e diretrizes para a promoção da igualdade racial, além do Decreto Nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, que prevê o reconhecimento,
a delimitação, a demarcação e a titulação da propriedade definitiva das terras
ocupadas pelas populações remanescentes de quilombos. A criação destas leis e
de um órgão para discutir a promoção de ações afirmativas, além de um decreto
que reconhece os direitos de propriedade das terras pelos descendentes de
africanos, já dão indícios de que estamos falando da necessidade das cotas
raciais para um público que foi quase anulado ao longo da história do Brasil.
Diante deste cenário, onde se questiona a
legalidade das cotas, objeto de julgamento na mais alta corte brasileira, como
os diversos setores da sociedade podem colocar em prática iniciativas para
mudar este quadro? Se o STF entender que as cotas raciais realmente ferem a
Constituição, como buscar uma diminuição das diferenças entre brancos e negros?
Algumas sugestões factíveis, como as que se seguem, se colocadas em prática, podem
causar um enorme impacto social para a promoção de uma igualdade racial:
- Nas escolas, há
a necessidade do professor abordar temas relacionados à negritude, ir além
do que é proposto nos livros didáticos. A escola deve tratar da educação
para as relações étnico-raciais ao longo de todo o ano e incorporá-la em
seu projeto pedagógico, evitando, assim, que o tema seja apresentado
apenas em eventos, como no dia 13 de maio, ou no dia 20 de novembro.
- A pré-escola
deve disponibilizar para as crianças bonecas negras, decorar os murais com
as diversas matizes presentes no ambiente escolar a fim de que se
contemple a diversidade étnica existente em um espaço onde se constrói
referências para a vida.
- A TV precisa procurar
as diversas entidades que agenciam atores negros, como a CIDAN, Centro
Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro, idealizado pela
Atriz Zezé Motta e que oferece um catálogo de atores afrodescendentes
preparados para entrar no mercado de trabalho. Ao fazer isso, a TV dará
visibilidade a maioria da população brasileira e deixará de apresentar os
estereótipos que ainda são recorrentes nos diversos programas televisivos.
- As ações
publicitárias devem inserir mais modelos negros em suas campanhas. A
associação do fenótipo negro a determinadas marcas pode tornar-se um
atrativo para o público consumidor que ainda não se vê adquirindo aquele produto, justamente por
não se ver em tais projetos de marketing.
- O empresariado
deve propor ações na área de recursos humanos que insira os jovens negros no
mercado de trabalho.
- O Judiciário
poderia adotar regime de progressão continuada para os crimes mais leves e
empregar os presidiários nas inúmeras tarefas existentes nos fóruns e tribunais.
Também poderia oferecer vagas em cursinhos pré-vestibulares ou cursos de
alfabetização como parte da remuneração desses potenciais trabalhadores.
- Sabemos que há
um crescimento do número de professores negros no magistério, mas que tal
uma cota que possibilitasse o ingresso de uma população negra, maior,
também, nos cursos de medicina, de jornalismo, publicidade, etc?
Partindo para as considerações finais, não
podemos nos esquecer de que estamos em um Brasil da diversidade e que o racismo
existe, sim, por aqui. Fingir que vivemos em uma democracia racial é jogar para
debaixo do tapete um problema que é de todos, independentemente da cor ou
classe social. Por isso uma votação que decida pela legalidade das cotas
raciais é urgente.
Enquanto isto, em nossa atuação profissional,
aderir ao silenciamento, negando a existência do racismo em nosso país, é tornar-se
cúmplice de um processo de exclusão de uma comunidade que se apresenta
invisível nos mais diversos setores. Promover iniciativas que busquem a
diminuição da desigualdade social entre brancos e negros é tarefa minha e sua.
Afirmar que vamos extinguir o racismo, talvez não seja possível, mas propor
políticas de inclusão em nosso campo de atuação, isto sim, é possível.