Tuesday, April 24, 2012

    Da urgência para a legalidade das cotas raciais


    Por: Melquisedec Chaves do Nascimento


    Na semana em que o STF julga a constitucionalidade das cotas raciais, cabem algumas considerações sobre um tema que ainda causa muita polêmica. Antes de discorrer sobre o assunto, vamos fazer uma distinção entre dois termos similares. As cotas raciais estão estritamente ligadas à promoção de ações afirmativas com o objetivo de diminuir as desigualdades sociais entre diferentes grupos étnicos. As cotas sociais, termo similar e mais abrangente, prevêem pontuações em concursos, vagas na universidade, etc. voltadas para alunos egressos da escola pública, brancos, índios, negros, cadeirantes, etc. Ou seja, enquanto uma atende a um grupo mais específico, a segunda busca atender diferentes públicos, independentemente da cor/origem.

    Quando se parte para um debate sobre a pertinência destas políticas de ação positiva, vemos posicionamentos na defesa de que, primeiramente, deveríamos ter uma escola de qualidade para todos, o que extinguiria a necessidade das cotas. No entanto, basta olharmos para a escola pública e perceber que estamos muito longe de ver uma educação em que a qualidade do ensino possibilite o ingresso da maioria dos alunos na universidade pública. Por outro lado, há os que defendem as cotas igualitariamente para todos os brasileiros pobres, independentemente da cor, isto é, que as cotas devem ser direito de todos, sem a delimitação de etnia ou grupo social a que pertence o interessado.

    No entanto, é muito fácil notar que, do ponto de vista da inclusão social, há uma disparidade enorme entre as condições da comunidade afrodescendente e a realidade da população branca. Sabemos que tanto o branco como o negro sofre discriminação. Não se pode negar a existência de atitudes discriminatórias contra o branco pobre, mas há também a discriminação relacionada ao pertencimento étnico. Logo, se o cidadão é negro, e pobre, ele vai ser duas vezes discriminado, uma pela sua cor, e outra pela sua condição socioeconômica.

    Diante deste fenômeno, podemos problematizar o foi colocado até aqui, fazendo uma reflexão a partir de algumas indagações: com quantos médicos negros você já foi consultado? Quantos alunos afrodescendentes estão frequentando os colégios tradicionais de São Paulo, como o Rio Branco, Pueri Domus, etc? Quantos negros estão atuando nas telenovelas que não fazem um papel em que desempenham uma função subalterna? Até que ponto o programa Esquenta, da Regina Casé, realmente promove a autoestima da população negra? Ou ainda vende uma imagem da democracia racial no Brasil? Quais os motivos que levam o nosso país a ter um contingente da população negra tão grande no sistema penitenciário? Quantos alunos negros se veem representados positivamente nos livros didáticos? Por quais motivos a taxa de mortalidade infantil da população negra é maior que a branca?

    Se considerarmos que vivemos no país com maior população negra, depois da Nigéria e que, segundo dados do IBGE, mais de 50 % da população se declaram preta ou parda, as questões acima podem evidenciar que algo está errado e nos permitem fazer alguns contrapontos com outro país que adotou as cotas raciais.

    Os EUA, palco de inúmeras contestações contra o sistema segregacionista e que tiveram como destaques ativistas em favor dos direitos civis da população afro-americana, como Martin Luther King, Malcon X e os membros do Partido Panteras Negras, em 1860, já adotavam o sistema de cotas em algumas universidades e, curiosamente, em 1885, já possuíam  uma universidade para atender a população negra, a Atlanta University.

    Na década de 60 as pautas reivindicatórias contra o Apartheid, previam uma atuação mais contundente do negro contra o racismo praticado naquele país, que defendia, inclusive uma população afro-americana armada, não para sair atirando a esmo, mas para se defender do poder de fogo das organizações como a Ku Klux Klan, dos policiais racistas e de outros grupos separatistas.

    No Brasil, embora não tivéssemos uma atuação do movimento negro de modo radical como nos EUA, foram as reivindicações feitas pelos movimentos sociais que resultaram em alguns indícios de melhora na política assistencial da população negra, sobretudo com a atuação do finado professor, poeta, ensaísta, deputado, e senador, Abdias do Nascimento, na militância do movimento negro.

    Como fruto dessas mobilizações, podemos mencionar alguns avanços como objeto de políticas públicas relacionadas as temáticas étnico-raciais nos últimos anos. Por exemplo, a criação da lei 10.639/03, que altera a Lei de Diretrizes e Bases e versa sobre a obrigatoriedade do ensino de história da África e dos africanos e da luta dos negros no Brasil, em todo o currículo escolar. Também em 2003, a criação da SEPPIR, Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que tem como objetivo a articulação de políticas e diretrizes para a promoção da igualdade racial, além do Decreto Nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, que prevê o reconhecimento, a delimitação, a demarcação e a titulação da propriedade definitiva das terras ocupadas pelas populações remanescentes de quilombos. A criação destas leis e de um órgão para discutir a promoção de ações afirmativas, além de um decreto que reconhece os direitos de propriedade das terras pelos descendentes de africanos, já dão indícios de que estamos falando da necessidade das cotas raciais para um público que foi quase anulado ao longo da história do Brasil.

    Diante deste cenário, onde se questiona a legalidade das cotas, objeto de julgamento na mais alta corte brasileira, como os diversos setores da sociedade podem colocar em prática iniciativas para mudar este quadro? Se o STF entender que as cotas raciais realmente ferem a Constituição, como buscar uma diminuição das diferenças entre brancos e negros? Algumas sugestões factíveis, como as que se seguem, se colocadas em prática, podem causar um enorme impacto social para a promoção de uma igualdade racial:

    • Nas escolas, há a necessidade do professor abordar temas relacionados à negritude, ir além do que é proposto nos livros didáticos. A escola deve tratar da educação para as relações étnico-raciais ao longo de todo o ano e incorporá-la em seu projeto pedagógico, evitando, assim, que o tema seja apresentado apenas em eventos, como no dia 13 de maio, ou no dia 20 de novembro.

    • A pré-escola deve disponibilizar para as crianças bonecas negras, decorar os murais com as diversas matizes presentes no ambiente escolar a fim de que se contemple a diversidade étnica existente em um espaço onde se constrói referências para a vida.

    • A TV precisa procurar as diversas entidades que agenciam atores negros, como a CIDAN, Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro, idealizado pela Atriz Zezé Motta e que oferece um catálogo de atores afrodescendentes preparados para entrar no mercado de trabalho. Ao fazer isso, a TV dará visibilidade a maioria da população brasileira e deixará de apresentar os estereótipos que ainda são recorrentes nos diversos programas televisivos.

    • As ações publicitárias devem inserir mais modelos negros em suas campanhas. A associação do fenótipo negro a determinadas marcas pode tornar-se um atrativo para o público consumidor que ainda não se vê  adquirindo aquele produto, justamente por não se ver em tais projetos de marketing.

    • O empresariado deve propor ações na área de recursos humanos que insira os jovens negros no mercado de trabalho.

    • O Judiciário poderia adotar regime de progressão continuada para os crimes mais leves e empregar os presidiários nas inúmeras tarefas existentes nos fóruns e tribunais. Também poderia oferecer vagas em cursinhos pré-vestibulares ou cursos de alfabetização como parte da remuneração desses potenciais trabalhadores.

    • Sabemos que há um crescimento do número de professores negros no magistério, mas que tal uma cota que possibilitasse o ingresso de uma população negra, maior, também, nos cursos de medicina, de jornalismo, publicidade, etc?

    Partindo para as considerações finais, não podemos nos esquecer de que estamos em um Brasil da diversidade e que o racismo existe, sim, por aqui. Fingir que vivemos em uma democracia racial é jogar para debaixo do tapete um problema que é de todos, independentemente da cor ou classe social. Por isso uma votação que decida pela legalidade das cotas raciais é urgente.

    Enquanto isto, em nossa atuação profissional, aderir ao silenciamento, negando a existência do racismo em nosso país, é tornar-se cúmplice de um processo de exclusão de uma comunidade que se apresenta invisível nos mais diversos setores. Promover iniciativas que busquem a diminuição da desigualdade social entre brancos e negros é tarefa minha e sua. Afirmar que vamos extinguir o racismo, talvez não seja possível, mas propor políticas de inclusão em nosso campo de atuação, isto sim, é possível.



    1 comments:

    Calixto Júnior said...

    Primeiro, parabéns pelo texto! É de ótima qualidade ao abordar o tema de maneira abrangente incluindo soluções além daquelas que a lei se propõe.

    Realmente o cidadão negro e pobre é duas vezes discriminado, aí vão dizer que a cota racial e social é discriminar duas vezes o cidadão branco e rico. Não se combate discriminação com discriminação, mas até que a igualdade exista por outras vias que não as cotistas, sou a favor sim das cotas.

    Mais de 50% da população se declara preta ou parda, mas essa maioria não bate o pé requerendo direitos. O movimento negro nasceu na mesma época que o movimento sindical metalúrgico e o movimento dos sem terra, deixando os interesses de cada movimento de lado, vemos que o movimento negro foi o que menos se desenvolveu. Falta união, falta queimar colchão!

    Resumindo, o mundo ideal seria esse quando você cita 7 atitudes após "dois pontos".